terça-feira, 4 de dezembro de 2007

ASAE


A MEIA DÚZIA DE LAVRADORES que comercializam directamente os seus produtos e que sobreviveram aos centros comerciais ou às grandes superfícies vai agora ser eliminada sumariamente. Os proprietários de restaurantes caseiros que sobram, e vivem no mesmo prédio em que trabalham, preparam-se, depois da chegada da "fast food", para fechar portas e mudar de vida. Os cozinheiros que faziam a domicílio pratos e "petiscos", a fim de os vender no café ao lado e que resistiram a toneladas de batatas fritas e de gordura reciclada, podem rezar as últimas orações. Todos os que cozinhavam em casa e forneciam diariamente, aos cafés e restaurantes do bairro, sopas, doces, compotas, rissóis e croquetes, podem sonhar com outros negócios. Os artesãos que comercializam produtos confeccionados à sua maneira vão ser liquidados.

A SOLUÇÃO FINAL vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão. Ninguém, deste velho mundo, sobrará. Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado. Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm Estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela carismática do Ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios do açúcar.

EM FRENTE ao meu local de trabalho, há dois ou três cafés onde os estudantes, nos intervalos, bebem uns copos, conversam, namoram e jogam às cartas ou ao dominó. Acabou! É proibido jogar!
Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber café em chávenas de louça, ou vinho, águas, refrigerantes e cerveja em copos de vidro. Tem de ser em copos de plástico.
Vender, nas praias ou nas romarias, bolas de Berlim ou pastéis de nata que não sejam industriais e embalados? Proibido.
Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e Porto, como em Vinhais ou Estremoz, os exércitos dos zeladores da nossa saúde e da nossa virtude fazem razias semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas, queijos, compotas, pão e enchidos.
Na província, um restaurante artesanal é gerido por uma família que tem, ao lado, a sua horta, donde retira produtos como alfaces, feijão verde, coentros, galinhas e ovos? Acabou. É proibido. Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal? Proibido.
Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido.

Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o azeite e o vinagre é proibido. Tem de ser garrafas especialmente preparadas.
Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta, azeite e azeitonas, alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou. Está proibido.
Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os miúdos acham graça? Acabou. É proibido.
Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa e umas fatias de fiambre para servir uma refeição ligeira a um cliente apressado? Proibido.
Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes caseiros é proibido. Só industriais.
É proibido ter pão congelado para uma emergência: só em arcas especiais e com fornos de descongelação especiais, aliás caríssimos.
Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros feitos pela vizinha, uma excelente cozinheira que faz isto há trinta anos? Proibido.

AS REGRAS, cujo não cumprimento leva a multas pesadas e ao encerramento do estabelecimento, são tantas que centenas de páginas não chegam para as descrever.
Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de vinho tinto tem de haver etiquetas a dizer Coca-Cola e vinho tinto.
Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente para cada género.
Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros: não se pode cortar cebola na mesma mesa em que se fazem tostas mistas.
No frigorífico, tem de haver sempre uma caixa com uma etiqueta "produto não válido", mesmo que esteja vazia.

Cada vez que se corta uma fatia de fiambre ou de queijo para uma sanduíche, tem de se colar uma etiqueta e inscrever a data e a hora dessa operação.
Não se pode guardar pão para, ao fim de vários dias, fazer torradas ou açorda.
Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou croquetes? Proibido.
Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm de ser de plástico, papel ou tecido.
Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fizeram? Proibido. As torneiras nas cozinhas devem ser de abrir ao pé, ao cotovelo ou com célula fotoeléctrica.

As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas duas vezes por dia e devidamente registadas.
As temperaturas dos frigoríficos e das arcas têm de ser medidas três vezes por dia, registadas em folhas especiais e assinadas pelo funcionário certificado.
Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou dos fritos? Proibido. Tem de ser de plástico ou de aço.
Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim, pode ser. Desde que seja com facas de cores diferentes, em locais apropriados das mesas e das bancas, tendo o cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a hora do corte.
O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-se aos mercados e leva o seu próprio carro para transportar uns queijos, uns pacotes de leite e uns ovos? Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.

TUDO ISTO, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde. Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, pois claro !!!!
«Retrato da Semana» - «Público» de 25 de Novembro de 2007

5 comentários:

Jerico & Albardas, Lda. disse...

Eu costumo dizer esta frase com alguma frequência:
Se Portugal cumprir as leis que faz, o país pára.
É o que está a acontecer.

Reconheço que a ASAE vem de certo modo moralizar alguns sectores e uma sociedade de facilitismo que se instalou. É um facto.
Mas é lamentável o timing em que o faz.
O país está de rastos. As pessoas não vivem. Sobrevivem e com dificuldades enormes para se manterem à tona.
Esta não é decididamente a fase ideal para sermões e moralismos.
Sobretudo sermões e moralismos impostos por quem tem as maiores responsabilidades pela crise que se vive.
As aplicações de coimas e as obrigações de obras de melhorias é colocar uma corda ao pescoço de pessoas que fazem das tripas coração para manter o seu negóciozito.

Também a legislar, Portugal é mais papista que o papa. Sempre que Bruxelas sai com uma directiva a exigir 8, Portugal legisla a exigir 80. Resultado o país não tem capacidade de responder. E não responde.
As nossas leis seriam de exigir aos melhores países europeus e nunca a países como Portugal, cada vez mais longe da Europa e cada vez mais pertos de Marrocos.
E estamos quase lá.

Pedro Costa disse...

Não garanto que o seja na totalidade, mas existem muitas partes deste texto que correspondem a um artigo de opinião de António Barreto, penso que no Público.
A ideia do Takitala é muito boa mas não é dele. Nestas situações costuma-se dizer quem escreveu.
Acho eu!

D'artagnan disse...

Os tempos da desconfiança, do medo, da denúncia, da queixa, da multa e de tratar como "reis" alguns inspectores está de volta.

Tem piada que no tempo da PIDE era a mesma coisa.

Mais curioso ainda, é que um organismo deste tipo tenha surgido debaixo do aval de um governo socialista.

Só quem for cego é que não quer ver que o que se está a preparar é algo de parecido com o que Hitler fez com a Aústria ("para o bem do povo austriaco" - dizia ele)

E mais não digo, porque tenho medo... a democracia, já não é o que era (mas a "polícia" está cada vez melhor).

Abram os olhos: Salazar também se preocupava... e no entanto...

lua-de-mel-lua-de-fel disse...

Tem razão, vencigetorix, o texto é, na íntegra, do António Barreto, do Público de 25 de Novembro (sei não porque seja paranóica, mas pq tb o estive para colocar neste blog). De qualquer modo, é um texto com o qual coincide a minha opinião sobre a ASAE, bem como coincide com a opinião do Jerico e do d’artagnan.
De facto, era preciso fazer-se cumprir algumas normas, depois de décadas em que qualquer pessoa abria um estabelecimento. Não obstante, a prática tem mostrado um espírito abusivo e obtuso:
a) nas cidades europeias, como Paris e/ou Londres, proliferam, por exemplo, pensões do mais chunga que existe, mesmo para a nossa pouca exigência portuguesa enquanto clientes e nem por isso uma ASAE vai lá fechá-las. Porquê? Porque está em causa postos de trabalho. Em relação aos mercados, idem.
b) bem ao espírito português, este excesso de zelo conta com o serviço de novos tipos de bufizitos pidescos que, embora não peçam o livro de reclamações, fazem denúncias anónimas para vingarem, à falta de maior argumento,empatias pessoais ou interesses económicos/imobiliários (sobretudo quando são eles que estão em falta);
c) se a ASAE pretende salvaguardar a qualidade de vida dos portugueses enquanto clientes, então esperava-se uma atitude mais pedagógica e não o encerramento imediato, como assistimos no caso do Jumbo há cerca de um mês, onde as pessoas tiveram que sair à pressa;
d) decorrente da alínea anterior, isto significa que o que existe é uma pornográfica caça à multa, interessando mais sacar dinheiro do que garantir a qualidade dos serviços, dando um prazo para resolver alguns problemas ou, pelo menos, encerrar no dia seguinte, exceptuando casos dramáticos em que estivesse em causa a saúde pública, uma minoria raríssima (o pleonasmo é consciente);
e) com isto, surgiram uma quantidade enorme de empresas prestadoras de serviços anti-ASAE, diminuindo o desemprego e pagando impostos.
f) apesar de pensar que um dia destes vamos assistir a uma abertura de telejornal com inspectores da ASAE a serem corridos a pontapé num qualquer mercado, a verdade é que a culpa não é deles, mas de quem legisla.
g) sublinhando o comentário do jerico, esta não com certeza a melhor conjectura para estes excessos de zelo completamente ridículos, dada a situação económica do país e o índice de sobrevivência de agregados familiares que vivem dos pequenos biscates, como o vender os produtos da sua terra ou os bolos feitos em casa.
h)e, contudo, continuam as meretrizes de beira de estrada nas nossas estradas nacionais. Será que esta actividade é considerada como fazendo parte da nossa riqueza cultural e, por isso, legítima?

D'artagnan disse...

O melhor é estarmos todos calados... ou ainda vamos todos presos.

O que vale é que o Tarrafal já não está aberto (mas com os fundos comunitários nunca se sabe).

Que tristeza de país.