sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Eli, Eli, Lama Sabachtani? (*)

Sentada, ainda ensonada, na cadeira fria do café, peço, em voz ainda pouco límpida, um café cheio (55 cêntimos), preparando já o costumeiro cigarro (2,75: 20 = 14 cêntimos) da praxe matinal. Na já fraca esperança de encontrar grandes novidades sobre o mundo, pego, num gesto quotidiano repetido, como quem lava os dentes (dentífrico – 2 euros; escova – 2,5 euro; dentista – quando dá – 30 euros), no jornal (80 cêntimos). Como o dia exige, num atordoamento politicamente correcto, comenta-se e lamenta-se a pobreza, do mundo e, mais ainda, porque mais perto e passível de nos aparecer diante de nós numa tarde de compras, de Portugal. A percentagem da vergonha, usando o termo do nosso PR, é de 20% de pobres em Portugal, ou seja, uma em cada cinco pessoas é pobre. É claro que dizer isto não é grande coisa, mesmo que nos choque, inicialmente (ou até virar a página do jornal, mudar de canal televisivo, etc), a dita proporção, até porque esse um em cinco não se senta a tomar café connosco – e, sejamos honestos, pensamos “ainda bem”. Odiamos que nos estraguem o dia, sobretudo ao nos obrigarem a ver que há pessoas mais miseráveis que nós. Pior, que sintamos que seremos nós, a indiferenciada e heterogénea “classe média”, os próximos uns em cinco, melhor, quatros em cinco.

Sou-vos franca: não penso todos os dias na miséria dos outros, não verto lágrimas 24h por dia pela morte pela pobreza, não lamento a todos os minutos o não acesso ao mundo dos pobres do país e do mundo. Não por egoísmo puro, mas para não dar um tiro na cabeça, preferindo, muitas vezes, a serenidade da alienação. Sou humana, filha de Deus e Diabo, como diria Régio. Sou humana, situada algures entre a besta e Deus, como escreveria Nietzsche.

Escrevia já Aristóteles que só pode ser generoso quem tem para dar. Os pobres não podem ser generosos, mas são eles, não raras vezes, que, no pouco que têm, vão ajudando os outros. Dá-me náuseas o apelo de algumas instituições, dos políticos, dos programas da treta da nossa televisão à sociedade civil para que ajude os mais necessitados, quando sabem o estado deplorável da nossa economia e a perda de poder de compra da já quase ida classe média, usando este apelo numa má retórica de propaganda e não com o intuito de ajudar. Usam o complexo de culpa para nos chantagear emocionalmente, mas não dão o exemplo e nem sequer exigem mudanças estruturais nas políticas sociais, nacionais e internacionais, contra a pobreza manifesta e, sobretudo, contra a que se esconde, a que penaliza duas vezes as vítimas, como se ser-se pobre fosse vergonhoso, como ser-se pobre fosse uma consequência de qualquer acto pecaminoso ou desvio às leis de Deus e do Humano, como ser pobre nos torne menos dignos na nossa humanidade.

Infelizmente, a nossa capacidade humana de adaptação mantém-se nestas situações e, à força do hábito, acabaremos por não pensar mais no assunto até ao próximo ano ou até nos colocarem face-a-face, mesmo contra a nossa vontade, com “o problema” – este incómodo, este embaraço - , como se, por acto de pura magia, o não pensar fosse sinónimo de não existência.

Lamentamos a pobreza. E depois?!

(*) Actualmente, pensa-se que a tradução clássica desta frase de Jesus está errada, significando, exactamente o contrário. Como não sou expert em aramaico, utilizo-a no sentido que sempre lhe demos: "Pai, Pai, por que me abandonaste?".

3 comentários:

Jerico & Albardas, Lda. disse...

A escrever desta maneira, vejo que ainda tens muito para dar, ao contrário dos 4/5 de pobres que seremos em breve.
Parabéns. Um post fabuloso.

Carlos Godinho disse...

Olá.
Gostei da sinceridade como escreves: uma sinceridade que nos coloca face à sociedade de que somos parte, às vezes tão pouco justa, mas também face a nós próprios. E não sejamos hipócritas: na verdade alheamo-nos com tanta facilidade das dificuldades dos outros e continuamos de bem connosco, esquecendo que este mundo é dom oferecido a todos, sem excepção. Pelo menos no limiar daquilo que podemos designar como «dignidade humana». Obrigado pelo teu post. A «tua» verdade fez-me reflectir.
Cumprimentos.

Gaius Germanicus disse...

Há posts que lemos, relemos, reflectimos sobre eles e nada mais temos a acrescentar.
Mais uma vez parabéns por traduzir aquilo não sabemos escrever.

Ave Caesar