segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Luiz Pacheco (1925-2008)


"Tenho pena, ah como eu tenho pena!... dos que precisam de inventar coragem para um novo dia, certezas certezinhas, obediência a religião ou partido ou rotinas, de inventar-se comodidades necessidades ou ilusórias vaidades de levar melhor vidinha (ceguetas todos eles aos limites da humana criatura que é para todos e de repente o coveiro), razões para estar e lutar além destas, tão simples afinal e misteriosas sempre, tão naturais e primitivas: uma rapariga nossa que amamenta o filho, duas crianças que pedem pão e olham para ti.

Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos, lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o vómito; fui até às entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente estranha nesta viagem. Pobre gente: estúpidos de medo, doidos espertalhões, toscos patarecos, foliões e parasitas da Vida, parasitas (os mais criminosos, estes) chulos do próprio talento, desperdiçando tudo: as horas do relógio deles e dos outros e as virtudes deles e dos outros, e os defeitos de todos, que tudo tem seu calor e seu exemplo; ou frustrados falhados tentando arrastar os mais para o poço onde se deixaram cair por lazeira ou cobardia, impotência de criar (mas o coveiro nada perdoa!). Cadáveres adiados fedorentos viciosos de manhas e muito mal mascarados. Uma caca a respirar.

Ora deixem-me que lhes diga: um cadáver não nunca tem terá razão mesmo que a tivesse tido antes. Um estúpido um cobardolas é para rir e chorar, porque a estupidez e o medo não têm medida. Um patareco, dá-se-lhe um pontapé no cu, um parasita esborracha-se por nojo e a um folião fazemos notar que não lhe achamos graça nenhuma. E fugi dos frustrados e falhados que é a malta mais tratante e castradora que existe. Mas um bébé! uma rapariga com um filho ao colo! os bambinos em volta! são os bichos mais exigentes e precisados de tudo. E há que lhes dar tudo. Eis, senhores, porque saúdo a manhã e faço gosto em a ver inda mais uma vez, eis porque a pardalada me incita. E no riso do meu Paulocas uma leve ironia contente me desperta, babada em leite e ternura. Somos puros. Sabemos e cumprimos. Bem-aventurados somos e vós, também.

Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis, se as praticardes."

Luiz Pacheco, excerto de "Comunidade" (dedicado a Cesariny, Poeta do Corpo), in Exercícios de Estilo, 1973

1 comentário:

D'artagnan disse...

Um visionário e um génio do século XX...

É importante falar dos homens que se recusam a vergar a sua honestidade intelectual à vontade dos (supostos) iluminados. São estes homens, que nos lembram que a humanidade PODERIA ser diferente, enfim...